quarta-feira, 22 de abril de 2015

Sentença Condenatória de Tiredentes


ACCORDÃO em Relação os da Alçada etc.

Vistos este autos que em observância das ordens da dita senhora se fizeram summários aos vinte e nove Réus pronunciados conteudos na relação folhas 14 verso, devassas, perguntas apensos de defesa allegada pelo Procurador que lhe foi nomeado etc, Mostra-se que na Capitania de Minas alguns Vassallos da dita Senhora, animados do espírito de perfídia ambição, formaram um infame plano para se subtrahirem da sujeição, e obediência devida a mesma senhora; pretendendo desmembrar, e separar do Estado aquella Capitania, para formarem uma república independente, por meio de urna formal rebelião da qual se erigiram em chefes e cabeças seduzindo a uns para ajudarem, e concorrerem para aquella perfida acção, e communicando a outros os seus atrozes, e abomináveis intentos, em que todos guardavam maliciosamente o mais inviolável silêncio; para que a conjuração pudesse produzir effeito, que todos mostravam desejar, pelo segredo e cautela, com que se reservaram de que chegasse à notícia do Governador, e Ministros porque este era o meio de levarem avante aquelle horrendo attentado, urgido pela infidelidade e perfídia: Pelo que não só os chefes cabeças da Conjuração, e os ajudadores da rebelião, se constituíram Réus do crime de Lesa Magestade da primeira cabeça, mas também os sabedores, e consentidores della pelo seu silêncio; sendo tal a maldade e prevaricação destes Réus, que sem remorsos faltaram à mais incomendável obrigação de Vassallos e de Catholicos, e sem horror contrahiram a infâmia de traidores, sempre inherente, e anexa a tão enorme, e detestável delicto.

Mostra-se que entre os chefes, e cabeças da Conjuração o primeiro que suscitou as idéias de república foi o Réu Joaquim José da Silva Xavier por alcunha o Tiradentes, Alferes que foi da Cavallaria paga da Capitania de Minas, o qual a muito tempo, que tinha concebido o abominável intento de conduzir os povos daquella Capitania a uma rebelião; pela qual se subtrahissem da justa obediência devida á dita senhora, formando para este fim publicamente discursos sediciosos que foram denunciados ao Governador de Minas atencessor do atual, e que então sem nenhuma razão foram despresados como consta a folhas 74 folhas 68 verso folhas 127 verso e folha 2 do appenso numero 8 da devassa principiada nesta cidade; e suposta que aquelles discursos não produzissem naquelle tempo outro efeito mais do que o escândalo a abominação que mereciam, contudo como o Réu viu que o deixaram formar impunemente aquellas criminosas práticas, julgo por occasião mais oportuna para continual-as com maior efficácia, no anno de mil setecentos, e oitenta e oito em que o actual Governador de Minas tomou posse do governo da Capitania, e travava de fazer lançar a derrama, para completar o pagamento de cem arrobas de ouro, que os povos de Minas se obrigaram a pagar annualmente, pelo oferecimento voluntário que fizeram em vinte e quatro de março de mil setecentos e trinta e quatro; aceito e confirmado pelo Alvará de três de dezembro de mil setecentos e cincoenta em lugar da Capitação desde então abolida.

Porem persuadindo-se o Réu, de que o lançamento da derrama para completar o computo das cem arrobas de ouro, não bastaria para conduzir os novos à rebellião, estando elles certos, em que tinham oferecido voluntariamente aquelle computo, como um subrogado muito favoravel em lugar do quinto de ouro que tirassem nas Minas, que são um direito real eTn todas as Monarchias; passou a publicar que na derrama competia a cada pessoa pagar as quantias que arbitrou, que seriam capazes de atemorizar os povos, e pretender fazer contemeratio atrevimento, e horrendas falcidades, odioso o suavíssimo e ilustradíssimo governo da dita senhora, e as sábias providências dos seus Ministros de Estado, publicando que o actual governador de Minas tinha trazido ordem para opprimir, e arruinar os leais Vassallos da mesma senhora, fazendo com que nenhum delles pudesse ter mais de dez mil cruzados, o que jura Vicente Vieira da Morta a folhas 60 e Basilio de Brito Malheiro a folhas 52 verso ter ouvido a este Réu, e a folha 108 da devassa tirada por ordem do Governador de Minas, e que o mesmo ouvira a João da Costa Rodrigues a folhas 57, e o Conego Luiz Vieira a folhas 60, verso da devassa tirada por ordem do Vice-Rei do Estado.

Mostra-se que tendo o dito Réu Tiradentes publicado aquellas horríveis e notórias falcidades, como alicerce da infame machine, que pretendia estabelecer, comunicou em setembro de mil setecentos e oitenta e oito as suas perversas idéias, ao Réu José Alves Maciel visitando-o nesta cidade a tempo que o dito Maciel chegava de viajar por alguns Reinos estrangeiros, para se recolher a Vila Rica donde era natural, como consta a folhas 10 do appenso n. 1 e folhas 2 verso, do appenso n. 12 da devassa principiada nesta Cidade, e tendo o dito Réu Tiradentes encontrado no mesmo Maciel, não só approvação mas também novos argumentos que o confirmaram nos seus execrandos projectos como se prova a folhas 10 do dito appenso n. 1 e a folhas 7 do appenso n. 4 da dita devassa; saíram os referidos dois Réus desta Cidade para Vilia Rica Capital da Capitania de Minas ajustados em formarem o partido para a rebelião, e com effeito o dito Réu Tiradentes foi logo de caminho examinando os animos das pessoas a quem falava como foi aos Réus José Aires Gomes, e ao Padre Manoel Rodrigues da Costa; e chegando a Villa Rica a primeira pessoa a quem os sobreditos dois Tiradentes e Maciel falaram foi ao Réu Francisco de Paula Freire de Andrade que então era Tenente Coronel comandante da tropa paga da Capitania de Minas cunhado do dito Maciel; e supposto que o dito Réu Francisco de Paula hesitasse no princípio conformar-se com as idéias daqueles dois perfidos Réus, o que confessa o dito Tiradentes a folhas 10 verso do dito appenso n. 1; contudo persuadido pelo mesmo Tiradentes com falsa asserção, de que nesta Cidade do Rio de Janeiro havia um grande partido de homens de negocio promptos para ajudarem a sublevação, tanto que ella se effectuasse na Capitania de Minas; e pelo Réu Maciel seu cunhado com a phantastica promessa, de que logo que se executasse a sua infame resolução teriam socorro de Potências estrangeiras, referindo em confirmação disto algumas práticas que dizia ter por lá ouvido, perdeu o dito Réu Francisco de Paula, todo o receio como consta a folhas 10 verso e folhas 11 do appenso n. 1 e a folhas 7 do appenso n. 4 da devassa desta cidade, adotando os perfidos projectos dos ditos Réus para formarem a infame conjuração, de estabelecerem na Capitania de Minas uma república independente.

Mostra-se que na mesma Conjuração entrara o Réu Ignácio José de Alvarenga Coronel do primeiro regimento auxiliar da Companhia do Rio Verde ou fosse convidado e induzido pelo Réu Tiradentes, ou pelo Réu Francisco de Paula, como o mesmo Alvarenga confessa a folhas 10 do appenso n. 4 da devassa desta Cidade e que também entrara na mesma Conjuração do Réu Domingos de Abreu Vieira, Tenente Coronel de Cavallaria Auxiliar de Minas Novas convidado, e induzido pelo Réu Francisco de Paula como declara o Réu Alvarenga a folhas 9 do dito appenso n. 4 ou pelo dito Réu Paula juntamente com o Réu Tiradentes, e Padre José da Silva de Oliveira Rolim como confessa o mesmo Réu Domingos de Abreu a folhas 10 verso da devassa desta Cidade; e achando-se estes Réus conformes no detestável projecto de estabelecerem uma república naquella Capitania corno consta a folhas 11 do appenso n. 1 passaram a conferir sobre o modo da execução, ajuntando-se em casa do Réu Francisco de Paula a tratar da sublevação nas infames sessões que tiveram, como consta uniformemente de todas as confissões dos Réus chefes da conjuração nos, appensos das perguntas que lhe foram feitas; em cujos ventículos não só consta que se achasse o Réu Domingos de Abreu, ainda que se lhe communicava tudo quanto nelles se ajustava corno consta a folhas 10 do appenso n. 6 da devassa da Cidade, e se algumas vezes se conferisse em casa do mesmo Réu Abreu sobre a mesma matéria entre elles e os Réus Tiradentes, Francisco de Paula, e o Padre José da Silva de Oliveira Rolim; sem embargo de ser o lugar destinado para os ditos conventículos a casa do dito Réu Paula, para os quaes eram chamados estes Cabeças da Conjuração, quando algum tardava como se vê, a folhas 11 verso do appenso 1 da devassa desta Cidade, e do escripto folhas 41 da devassa de Minas do Padre Carlos Corrêa de Toledo para o Réu Alvarenga dizendo-lhe que fosse logo que estavam juntos.

Mostra-se que sendo pelo princípio do anno de mil setecentos e oitenta e nove se ajuntaram os Réus chefes da Conjuração em casa do Réu Francisco de Paula lugar destinado para os torpes, execrandos conventiculos, e ahi depois de assentarem uniformemente em que se fizesse a sublevação e motim na occasião em que se lançasse a derrama, pela qual suppunham que estaria o povo desgostoso, o que se prova por todas as confissões dos Réus nas perguntas constantes dos appensos; passaram cada um a proferir o seu voto sobre o modo de estabelecerem a sua ideada república, e resolveram que lançada a derrama se gritaria uma noite pelas ruas da dita Villa Rica - Viva a liberdade - a cujas vozes sem duvida acudiria o povo, que se achava consternado, e o Réu Francisco de Paula formaria a tropa fingindo querer rebater o motim, manejando-a com arte de dissimulação, enquanto da Cachoeira aonde assistia o Governador Geral, não chegava a sua cabeça, que devia ser-lhe cortada, o segundo voto de outros bastaria que o mesmo General fosse preso, e conduzido fora dos limites da Capitania dizendo-lhe que fosse embora, e que dissesse em Portugal que já nas Minas se não necessitava de Governadores; parecendo por esta forma que o modo de executar esta atrocissima acção ficava ao arbitrio do infame executor prova-se o referido do appenso n. l folhas 12 appenso n. 5 folhas 7 verso appenso 4 folhas 9 verso e folhas 10 pelas testemunhas folhas 103 e folhas 107 da devassa desta cidade e folhas 84 da devassa de Minas.

Mostra-se que no caso de ser cortada a cabeça do General, seria conduzido à presença do povo, e da tropa, e se lançaria um bando em nome da república, para que todos seguissem o partido do novo Governo consta do appenso n. 1 a folhas 12 e que seriam mortos todos aquelles que se lhe oppuzessem que se perdoaria aos devedores da Fazenda Real tudo quanto lhe devessem consta a folhas 89 verso da devassa de Minas e folhas 118 verso da devassa desta Cidade; em que aprehenderia todo o dinheiro pertencente à mesma Real Fazenda dos cofres reaes para pagamento da tropa consta do appenso n. 6 a folhas 6 verso e testemunhas folhas 104 e folhas 109 da devassa desta Cidade e a folhas 99 verso da devassa de Minas; assentando mais os ditos infames Réus na forma da bandeira e armas que deveria ter a nova república consta a folhas 3 verso appenso n. 12 a folhas 12 verso appenso n. 1 folhas 7 appenso n. 6 da devassa desta Cidade; em que se mudaria a Capitania para São João d’El-Rei, e que em Villa Rica se fundaria uma Universidade; que o ouro e diamantes seriam livres, que se formariam Leis para o governo da republica, e que o dia destinado para dar princípio a esta execranda rebellião, se avisaria aos Conjurados com este disfarce - tal dia é o baptisado - o que tudo se prova das confissões dos Réus nos appensos das perguntas; e ultimamente se ajustou nos ditos conventiculos o socorro, e ajuda com que cada um havia de concorrer.

Mostra-se, quanto ao Réu Joaquim José da Silva Xavier por alcunha o Tiradentes, que esta monstruosa perfídia depois de recitar naquellas escandalosas, e horrorosas assembléias as utilidades, que resultaria do seu enfame, se encarregou de ir cortar a cabeça do General consta a folhas 103 verso, e folhas 107, e dos appensos n. 4 a folhas 10 e n. 5 a folhas 7 verso da devassa desta cidade a folhas 99 verso da devassa de Minas, e conduzindo-a a faria patente ao povo e tropa, que estaria formada na maneira sobredita, não obstante dizer o mesmo Réu a folhas 11 verso do appenso n. 1 que só se obrigou a ir prender o mesmo General e conduzi-lo com a sua família fora dos limites da Capitania dizendo-lhe que se fosse embora parecendo-lhe talvez que com esta confissão ficaria sendo menor o seu delicto.
Mostra-se mais que este abominável Réu ideo a forma da bandeira que ia ter a república que devia constar de três triangulos com allusão as três pessoas da Santissima Trindade o que confessa a folhas 12 verso do appenso n. 1 ainda que contra este voto prevaleceu o do Réu Alvarenga que se lembrou de outra mais allusiva a liberdade que foi geralmente approvada pelos conjurados; também se obrigou o dito Réu Tiradentes a convidar para sublevação a todas as pessoas que pudesse confessa a folhas 12 appenso n. 1 satisfez ao que prometeu falando em particular a muitos cuja fidelidade pretendeu corromper principiando por expor-lhes as riquezes daquella Capitania que podia ser um Império florente, como foi a Antonio da Fonseca Pestana, a Joaquim José da Rocha, e nesta Cidade a João José Nunes Carneiro, e a Manoel Luiz Pereira, furriel do regimento de artilharia a folhas 16 e folhas 18 da devassa desta Cidade os quaes como atalharam a prática por onde o réu costumava ordinariamente principiar para sondar, os animos, não passou avante comunicar-lhe com mais clareza os seus malvados o perversos intentos confessa o Réu a folhas 18 verso appenso n. 1.

Mostra-se mais que o Réu se animou com sua costumada ousadia a convidar expressamente para o levante do Réu Vicente Vieira da Motta confessa este a folhas 73 verso e no appenso n. 20 chegando a tal excesso o descaramento deste Réu que publicamente formava discursos sediciosos aonde quer que se achava ainda mesmo pelas tavernas com mais escandaloso atrevimento, como se prova pelas testemunhas folhas 71 folhas 73 appenso n. 8 e folhas 3 da devassa desta Cidade e a folhas 58 da devassa de Minas; sendo talvez por esta descomedida ousadia com que mostrava ter totalmente perdido o temor das justiças, e o respeito e fidelidade de vida á dita senhora, reputado por um heroe entre os conjurados consta a folhas 102 e appenso n. 4 a folhas 10 da devassa desta Cidade.

Mostra-se mais que com o mesmo perfido animo, e escandalosa ousadia partiu o Réu de Villa Rica para esta Cidade em março de mil setecentos e oitenta e nove, com intento de publica e particularmente com as suas costumadas praticas convidar gente para o seu partido, dizendo a Joaquim Silvério dos Reis, que reputava ser do numero dos conjurados encontrando-o no caminho perante várias pessoas - Cá vou trabalhar para todos - o que juram as testemunhas folhas 15 folhas 99 verso folhas 142 verso folhas 100 e folhas 143 da devassa desta Cidade; e com effeito continuou a desempenhar a perfida commissão, de que se tinha encarregado nos abominaveis conventiculos falando no caminho a João Dias da Morta, para entrar na rebellião e descaradamente na estalagem da Varginha perante os Réus João da Costa Rodrigues e Antonio de Oliveira Lopes, dizendo a respeito do levante que - não era levantar que era restaurar a terra - expressão infame de que já tinha usado em casa de João Rodrigues de Macedo sendo reprehendido de falar em levante, consta a folhas 61 da devassa desta Cidade e a folhas 36 da devassa de Minas.

Mostra-se que nesta cidade falou o Réu com o mesmo atrevimento e escandalo, em casa de Valentim Lopes da Cunha perante várias pessoas, por occasião de se queixar o soldado Manoel Corrêa Vasques, de não poder conseguir a baixa que pretendia ao que respondeu o Réu como louco furioso que era muito bem feito que sofresse a praça, e que o assentasse, porque os cariocas americanos (sic) eram fracos vis de espíritos baixos porque podiam passar sem o julgo que soffriam, e viver independentes do Reino, e o toleravam, mas que se houvesse alguns como elle Réu talvez, que fosse outra cousa, e que elle receava que houvesse levante nas Capitanias de Minas, em razão da derrama que se esperava, e que em semelhantes circunstâncias seria facil de cujas expressões sendo repreendido, pelos que estavam presentes, não declarou mais os seus perversos e horríveis intentos consta a folhas 17 folhas 18 da devassa desta Cidade; e sendo o Vice-Rei do Estado já a este tempo informado dos aborninaveis projectos do Réu, mandou vigiar-lhe os passos, e averiguar as casas aonde entrava, de que tendo elle alguma noticia ou aviso, dispoz a sua fugida pelo sertão para as Capitanias de Minas sem dúvida para ainda executar os seus malévolos intentos se pudesse occultando-se para este fim em casa do Réu Domingos Fernandes, aonde foi preso achando-se-lhe as cartas dos Réus Manoel José de Miranda, e Manoel Joaquim de Sá Pinto do Rego Forte, para o Mestre de Campo Ignácio de Andrade o auxiliar na fugida [...]

Portanto condenam ao Réu Joaquim José da Silva Xavier por alcunha o Tiradentes Alferes que foi da tropa paga da Capitania de Minas a que com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas publicas ao lugar da forca e nella morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Villa Rica aonde em lugar mais publico della será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados em postes pelo caminho de Minas no sitio da Varginha e das Sebolas aonde o Réu teve as suas infames práticas e os mais nos sitios (sic) de maiores povoações até que o tempo também os consuma; declaram o Réu infame, e seus filhos e netos tendo-os, e os seus bens applicam para o Fisco e Câmara Real, e a casa em que vivia em Villa Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique e não sendo própria será avaliada e paga a seu dono pelos bens confiscados e no mesmo chão se levantará um padrão pelo qual se conserve em memória a infamia deste abominavel Réu; igualmente condemnam os Réus Francisco de Paula Freire de Andrade Tenente Coronel que foi da Tropa paga da Capitania de Minas, José Alves Maciel, Ignácio José de Alvarenga, Domingos de Abreu Vieira, Francisco Antonio de Oliveira Lopez, Luiz Vás de Toledo Piza, a que com baraço e pregão sejam conduzidos pelas ruas públicas ao lugar da forca e nella morram morte natural para sempre, e depois de mortos lhe serão cortadas as suas cabeças e pregadas em postes altos até que o tempo as consuma as dos Réus Francisco de Paula Freire de Andrade, José Alves Maciel e Domingos de Abreu Vieira nos lugares de fronte das suas habitações que tinham em Villa Rica e a do Réu Ignácio José de Alvarenga, no lugar mais publico na Villa de São João de El-Rei, a do Réu Luiz Vaz de Toledo Piza na Villa de São José, e do Réu Francisco Antonio de Oliveira Lopes defronte do lugar de sua habitação na porta do Morro; declaram estes Réus infames e seus filhos e netos tendo-os, e os seus bens por confiscados para o Fisco e Câmara Real, e que suas casas em que vivia o Réu Francisco de Paula em Villa Rica aonde se ajuntavam os Réus chefes da conjuração para terem os seus infames conventiculos serão também arrasadas e salgadas sendo próprias do Réu para que nunca mais no chão se edifique. Igualmente condemnam os Réus Salvador Carvalho de Amaral Gurel, José de Resende Costa Pae, José de Resende Costa Filho, Domingos Vidal Barbosa, que com baraço e pregão sejam conduzidos pelas ruas públicas, lugar da forca e nella morram morte natural para sempre, declaram estes Réus infames e seus filhos e netos tendo-os e os seus bens confiscados para o Fisco e Câmara Real, e para que estas execuções possam fazer-se mais comodamente, mandam que no campo de São Domingos se levante uma forca mais alta do ordinario. Ao Réu Claudio Manoel da Costa que se matou no carcere, declaram infame a sua memoria e infames seus filhos e netos tendo-os e os seus bens por confiscados para o Fisco e Câmara Real. Aos Réus Thomás Antonio Gonzaga, Vicente Vieira da Morta, José Aires Gomes, João da Costa Rodrigues, Antonio de Oliveira Lopes condemnam em degredo por toda a vida para os presidios de Angola, o Réu Gonzaga para as Pedras, o Réu Vicente Vieira para Angocha, o Réu José Aires para Embaqua, o Réu João da Costa Rodrigues para o Novo Redondo; o Réu Antonio de Oliveira Lopes para Caconda, e se voltarem ao Brasil se executará nelles a pena de morte natural na forca, e applicam a metade dos bens de todos estes Réus para o Fisco e Camara Real. Ao Réu João Dias da Morta condemnam em dez anos de degredo para Benguela, e se voltar a este Estado do Brasil e nelle for achado morrerá morte natural na forca e applicam a terça parte dos seus bens para o Fisco e Camara real. Ao Réu Victoriano Gonçalves Veloso condemnam em açoutes pelas ruas publicas, tres voltas ao redor da forca, e degredo por toda a vida para a cidade de Angola, achado morrerá morte natural na forca para sempre, e applicam a metade de seus bens para o Fisco e Camara Real. Ao Réu Francisco José de Mello que faleceu no carcere declaram sem culpa, e que se conserve a sua memória, segundo o estado que tinha. Aos Réus Manoel da Costa Capanema e Faustino Soares de Araújo absolvem julgando pelo tempo que tem tido de prisão purgados de qualquer presumpção que contra elles podia resultar nas devassas. Igualmente absolvem aos Réus João Francisco das Chagas e Alexandre escravo do Padre José da Silva de Oliveira Rolim, a Manoel José de Miranda e Domingos Fernandes por se não provar contra elles o que basta para se lhe impor pena, e ao réu Manoel Joaquim de Sá Pinto do Rego Fortes fallecido no carcere declaram sem culpa e que conserve a sua memória segundo o estado que tinha; aos Réus Fernando José Ribeiro, José Martins Borges condemnam ao primeiro em degredo por toda a vida para Benguela e em duzentos mil para as despesas da Relação, e ao Réu José Martins Borges em açoutes pelas ruas publicas e dez annos de galés e paguem os Réus as custas. Rio de Janeiro,18 de Abril de 1792.

Os juizes que condenaram Tiradentes e assinaram a sentença apenas com o sobrenome foram:
Sebastião Xavier de Vasconcellos Coutinho (Chanceler da Rainha); Antônio Gomes Ribeiro; Antônio Diniz da Cruz e Silva; José Antônio da Veiga; João de Figueiredo; João Manoel Guerreiro de Amorim Pereira; Antônio Rodrigues Gayoso e Tristão José Monteiro
Fonte: "Sentença Criminal", Adalto Dias Tristão, Ed.DelRey, 4ªEd., 1999
http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=612 acesso 22.04.2015

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Surgimento mitológico do benefício da dúvida: in dubio pro reo

O julgamento de Orestes teria originado o benefício da dúvida, consistente no brocardo latino in dúbio pro reo.
Orestes era filho de Agamenon, general da armada grega vitoriosa na guerra de Tóia, e de Clitemnestra, irmã de Helena, esposa de Menelau, traído por esta e Páris, príncipe dos Troianos e filho de Príamo e Hécuba, reis de Tróia .

Depois da guerra, saqueada e incendiada a cidade de Tróia, Agamenon retorna a Micenas, trazendo os espólios assacados da cidade destruída, dentre os quais, sua amante, Cassandra, filha do Rei Príamo e Hécuba. Climnestra e seu amante Egistro, primo de Agamenon, tramam e preparam o assassinato do rei, o que é feito em seu banho real por aquele.

Orestes, ainda criança, presencia toda a trama e a execução de seu pai Agamenon.
Após o assassínio do rei, Electra, irmã de Orestes o leva para o exterior, deixando-o seguro, mas ao retornar é colocada numa família de camponeses para viver longe do governo, ora tomado por sua mãe Clitemnestra e Egisto, assassinos de seu pai.

Orestes consulta o oráculo, em que o deus Apolo o induz à vingança de sangue, determinado que ele cumpra o compromisso de vingar o assassínio de seu pai Agamenon, na conhecida vinditta. Deveria matar Clitemnestra, a sua própria mãe, e seu amante Egisto.

Assim, dez anos mais tarde, Orestes retorna do exílio com o amigo Plíades e mata sua mãe Clitemnestra e Egistro, usurpadores do poder real, dentro do palácio do rei. Em decorrência do crime de sangue, Orestes passa a ser perseguido cruel e incessantemente pelas Fúrias, durante o dia e a noite, atormentando-o incansavelemente.

Deste modo, Orestes foi mandado à Atenas, onde seria julgado por um tribunal imparcial, cuja presidência seria da Deusa Palas Atena (ou Minerva), e sustentada a acusação do duplo homicídio pelas três Fúrias, tendo por jurados doze sábios anciãos, que após os debates mantém empatado o veredicto, seis deles votando pela condenação e outro tanto pela absolvição.

Em decorrência do resultado do julgamento, Palas Atena decidiu proferir o voto de desempate:
- Meu voto será irrecorrível - disse, olhando severamente para todos -, e ai daquele que ousar empregar palavras rudes para contestá-lo!

A Deusa foi-se até a urna e depositou secretamente o voto decisivo. Em seguida, um dos doze sábios retirou da urna o voto, e proclamou a sentença: - Atena, deusa da sabedoria e magistrada suprema deste tribunal, decide agora pela absolvição do acusado!

- Parece que se encerra, finalmente, a época cruel das selvagens punições e das terríveis expiações - disse Apolo às Erínias, com o semblante luminoso.

As três irmãs, contudo, esbravejavam, clamando contra o veredito: Que ninguém invoque, nunca mais, o nosso nome! Do antigo templo da justiça restam, agora, apenas destroços! Guardem bem estas palavras, pois exatamente isto repetirão futuramente os poetas.

Orestes abraçou-se ternamente a seu amigo Pílades, sabendo que consigo encerrava-se, finalmente, o horroroso ciclo de crimes em sua família.

A Deusa Palas Atena teria insculpido na antiguidade a clausula do benefício da dúvida, que resta gravado eternamente na cultura e corações dos povos.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

DA MODULAÇÃO DE EFEITOS NA ADI 4425



INFORMATIVO Nº 779 - Modulação: precatório e EC 62/2009 - 12

ADI 4425 QO/DF, rel. Min. Luiz Fux, 25.3.2015. (ADI-4425) - 4357

O Plenário, em conclusão de julgamento e por maioria, resolveu questão de ordem na qual proposta a modulação dos efeitos, no tempo, do quanto decidido no julgamento conjunto de ações diretas de inconstitucionalidade em que declarados parcialmente inconstitucionais dispositivos da EC 62/2009, que instituíra regime especial de pagamento de precatórios pelos Estados-membros, Distrito Federal e Municípios — v. Informativos 725, 739 e 778. Na ocasião, o Tribunal, por maioria, rejeitara a arguição de inconstitucionalidade formal consistente na inobservância do interstício entre os turnos de votação. No mérito, também por maioria, declarara inconstitucional: a) a expressão “na data de expedição do precatório”, contida no § 2º do art. 100 da CF, na redação da EC 62/2009. A Corte explicara que a regra configuraria critério de aplicação de preferência no pagamento de idosos, contudo, esse balizamento temporal discriminaria, sem fundamento, aqueles que viessem a alcançar 60 anos em data posterior à expedição do precatório, enquanto pendente e ainda não ocorrido o pagamento; b) os §§ 9º e 10 do art. 100 da CF, incluídos pela EC 62/2009, e o art. 97, II, do ADCT, que fixam regime unilateral de compensação dos débitos da Fazenda Pública inscritos em precatório. O Colegiado considerara que esse critério beneficiaria exclusivamente o devedor público, em ofensa ao princípio da isonomia. Além disso, os dispositivos instituiriam nítido privilégio em favor do Estado e em detrimento do cidadão, cujos débitos em face do Poder Público sequer poderiam ser compensados com as dívidas fazendárias; c) a expressão “índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança”, constante do § 12 do art. 100 da CF, incluído pela EC 62/2009, para que aos precatórios de natureza tributária se aplicassem os mesmos juros de mora incidentes sobre o crédito tributário; d) por arrastamento, a mesma expressão contida no art. 1º-F da Lei 9.494/1997, na redação dada pela Lei 11.960/2009, porquanto reproduziria a literalidade do comando contido no § 12 do art. 100 da CF; e) a expressão “independentemente de sua natureza”, sem redução de texto, contida no § 12 do art. 100 da CF, incluído pela EC 62/2009, para afastar a incidência dos juros moratórios calculados segundo índice da caderneta de poupança quanto aos créditos devidos pela Fazenda Pública em razão de relações jurídico-tributárias; f) por arrastamento, a expressão “índice oficial de remuneração da caderneta de poupança”, contida no art. 1º-F da Lei 9.494/1997, com a redação dada pelo art. 5º da Lei 11.960/2009; e g) o § 15 do art. 100 da CF e todo o art. 97 do ADCT. A Corte entendera que, ao criarem regime especial para pagamento de precatórios para Estados, Distrito Federal e Municípios, veiculariam nova moratória na quitação dos débitos judiciais da Fazenda Pública e imporiam contingenciamento de recurso para esse fim, a violar a cláusula constitucional do Estado de Direito, o princípio da separação de Poderes, o postulado da isonomia, a garantia do acesso à justiça, a efetividade da tutela judicial, o direito adquirido e a coisa julgada — v. Informativos 631, 643, 697 e 698. ADI 4357 QO/DF, rel. Min. Luiz Fux, 25.3.2015. (ADI-4357)

INFORMATIVO Nº 779 - Modulação: precatório e EC 62/2009 - 13 - ADI - 4425

A Corte resolveu a questão de ordem nos seguintes termos: 1) modulou os efeitos para que se desse sobrevida ao regime especial de pagamento deprecatórios, instituído pela EC 62/2009, por cinco exercícios financeiros a contar de 1º.1.2016; 2) conferiu eficácia prospectiva à declaração de inconstitucionalidade dos seguintes aspectos da ADI, fixado como marco inicial a data de conclusão do julgamento da questão de ordem (25.3.2015) e mantendo-se válidos os precatórios expedidos ou pagos até esta data, a saber: 2.1.) seria mantida a aplicação do índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança (TR), nos termos da EC 62/2009, até 25.3.2015, data após a qual (i) os créditos em precatórios deveriam ser corrigidos pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E) e (ii) osprecatórios tributários deveriam observar os mesmos critérios pelos quais a Fazenda Pública corrige seus créditos tributários; e 2.2.) seriam resguardados os precatórios expedidos, no âmbito da Administração Pública Federal, com base nos artigos 27 das Leis 12.919/2013 e Lei 13.080/2015, que fixam o IPCA-E como índice de correção monetária; 3) quanto às formas alternativas de pagamento previstas no regime especial: 3.1) seriam consideradas válidas as compensações, os leilões e os pagamentos à vista por ordem crescente de crédito previstos na EC 62/2009, desde que realizados até 25.3.2015, data a partir da qual não seria possível a quitação de precatórios por essas modalidades; 3.2) seria mantida a possibilidade de realização de acordos diretos, observada a ordem de preferência dos credores e de acordo com lei própria da entidade devedora, com redução máxima de 40% do valor do crédito atualizado; 4) durante o período fixado no item 1, seria mantida a vinculação de percentuais mínimos da receita corrente líquida ao pagamento dos precatórios (ADCT, art. 97, § 10), bem como as sanções para o caso de não liberação tempestiva dos recursos destinados ao pagamento deprecatórios (ADCT, art. 97, § 10); 5) delegação de competência ao CNJ para que considerasse a apresentação de proposta normativa que disciplinasse (i) a utilização compulsória de 50% dos recursos da conta de depósitos judiciais tributários para o pagamento de precatórios e (ii) a possibilidade de compensação de precatórios vencidos, próprios ou de terceiros, com o estoque de créditos inscritos em dívida ativa até 25.3.2015, por opção do credor do precatório; e 6) atribuição de competência ao CNJ para que monitorasse e supervisionasse o pagamento dos precatórios pelos entes públicos na forma da decisão proferida na questão de ordem em comento. Vencidos o Ministro Marco Aurélio, que não modulava os efeitos da decisão, e, em menor extensão, a Ministra Rosa Weber, que fixava como marco inicial a data do julgamento da ação direta de inconstitucionalidade. Reajustaram seus votos os Ministros Roberto Barroso, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. ADI 4357 QO/DF, rel. Min. Luiz Fux, 25.3.2015. (ADI-4357)


Decisão: Concluindo o julgamento, o Tribunal, por maioria e nos termos do voto, ora reajustado, do Ministro Luiz Fux (Relator), resolveu a questão de ordem nos seguintes termos: 1) - modular os efeitos para que se dê sobrevida ao regime especial de pagamento de precatórios, instituído pela Emenda Constitucional nº 62/2009, por 5 (cinco) exercícios financeiros a contar de primeiro de janeiro de 2016; 2) - conferir eficácia prospectiva à declaração de inconstitucionalidade dos seguintes aspectos da ADI, fixando como marco inicial a data de conclusão do julgamento da presente questão de ordem (25.03.2015) e mantendo-se válidos os precatórios expedidos ou pagos até esta data, a saber: 2.1.) fica mantida a aplicação do índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança (TR), nos termos da Emenda Constitucional nº 62/2009, até 25.03.2015, data após a qual (i) os créditos em precatórios deverão ser corrigidos pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E) e (ii) os precatórios tributários deverão observar os mesmos critérios pelos quais a Fazenda Pública corrige seus créditos tributários; e 2.2.) ficam resguardados os precatórios expedidos, no âmbito da administração pública federal, com base nos arts. 27 das Leis nº 12.919/13 e Lei nº 13.080/15, que fixam o IPCA-E como índice de correção monetária; 3) - quanto às formas alternativas de pagamento previstas no regime especial: 3.1) consideram-se válidas as compensações, os leilões e os pagamentos à vista por ordem crescente de crédito previstos na Emenda Constitucional nº 62/2009, desde que realizados até 25.03.2015, data a partir da qual não será possível a quitação de precatórios por tais modalidades; 3.2) fica mantida a possibilidade de realização de acordos diretos, observada a ordem de preferência dos credores e de acordo com lei própria da entidade devedora, com redução máxima de 40% do valor do crédito atualizado; 4) – durante o período fixado no item 1 acima, ficam mantidas a vinculação de percentuais mínimos da receita corrente líquida ao pagamento dos precatórios (art. 97, § 10, do ADCT), bem como as sanções para o caso de não liberação tempestiva dos recursos destinados ao pagamento de precatórios (art. 97, § 10, do ADCT); 5) – delegação de competência ao Conselho Nacional de Justiça para que considere a apresentação de proposta normativa que discipline (i) a utilização compulsória de 50% dos recursos da conta de depósitos judiciais tributários para o pagamento de precatórios e (ii) a possibilidade de compensação de precatórios vencidos, próprios ou de terceiros, com o estoque de créditos inscritos em dívida ativa até 25.03.2015, por opção do credor do precatório, e 6) – atribuição de competência ao Conselho Nacional de Justiça para que monitore e supervisione o pagamento dos precatórios pelos entes públicos na forma da presente decisão, vencido o Ministro Marco Aurélio, que não modulava os efeitos da decisão, e, em menor extensão, a Ministra Rosa Weber, que fixava como marco inicial a data do julgamento da ação direta de inconstitucionalidade. Reajustaram seus votos os Ministros Roberto Barroso, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 25.03.2015. – DOU 15-04-15 – DJE 15-04-15

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Fundamento de validade do direito de punir do Estado

Fundamento de validade do direito de punir do Estado:

Pode-se dizer, conforme os contratualistas, que o direito de punir do estado tem por fundamento de validade o contrato social. Segundo Roseau, na “origem das desigualdades sociais”, a ideia de propriedade deu ensejo às desigualdades entre as pessoas conforme a apropriação direta de bens da natureza que cada qual pudesse fazer e manter. O mais forte podia se apropriar de mais bens da natureza e conseguir mantê-los sob seu domínio em detrimento dos mais fracos. Todavia, muitas vezes a força sozinha não era capaz de impedir a expropriação desses bens por outras tribos ou clans mais numerosos e poderosos. Essa dificuldade de manutenção do status dominial ensejou o nascimento do Estado, com a função precípua de garantir a propriedade e propiciar a segurança às pessoas. Os ataques contra as normas penais deveriam ser reprimidos sempre para demonstrar, inobstante, a manutenção da validade e vigor normativo.

Immanuel Kant sustenta que, na formação do Estado pelo contrato social, ao abandonar o estado da natureza, o ser humano abriu mão de uma parte de sua liberdade em troca da proteção da propriedade e da segurança pública. Surgiu daí a impossibilidade da justiça ou vingança privada. A justiça passa a ser pública, Estatal, Judiciária. A punição do infrator serve para reafirmar a validade e vigor da norma. A pena é a retribuição justa pelo injusto praticado. É a resposta estatal legítima à conduta ilegítima do cidadão, impingindo-lhe um mal justo em decorrência do mal injusto por ele praticado, independentemente de qualquer fim utilitário.

Assim, ao consentir com a criação do Estado, atribuindo-lhe o poder de editar normas gerais, abstratas e cogentes, o ser humano consentiu que esse ente pudesse usar da violência, então legitimada pela vontade de seus membros, para criar e manter a paz entre os súditos. A norma representa a vontade da maioria expressa na forma de leis e regulamentos editados por seus representantes no poder legislativo, em tese, para a proteção do bem comum, da propriedade e da segurança pública.

Segundo o pensamento da escola crítica de Viena, desenvolvida entre nós por Juarez Cirino dos Santos com base filosófica e criminológica em Alessandro Barata, as normas do Estado visam proteger a propriedade e os direitos fundamentais dos detentores de capital, num total abandono aos interesses dos trabalhadores. O Estado de direito legitima a expropriação de parte da mão-de-obra do trabalhador pelo capital, a mais-valia, que enriquece as classes dominantes empobrecendo e criminalizando as classes dominadas. O Estado teria sido criado para fortalecer e perpetuar o domínio das classes dominantes, ao passo que o direito penal seria um mecanismo para encarcerar a pobreza, mantendo-a afastada do Poder Estatal. O direito, nessa ótica, seria um instrumento de controle social criado para manter “as coisas” exatamente como estão. Não seria um instrumento de evolução e desenvolvimento da sociedade. O ius puniendi teria por fundamento de validade o interesse das classes dominantes, dos detentores de capital.

Kelsen escalona o ordenamento jurídico na clássica figura piramidal, afirmando que o fundamento de validade da norma inferior é a norma superior imediata, que encontra seu fundamento de validade em outra norma imediata superior, e assim sucessivamente até encontrar o fundamento de validade de todo o sistema na constituição, que por sua vez tem por fundamento de validade na norma hipotética fundamental, que nada mais é senão o preceito de que “todos devem respeitar a constituição”, ou seja a impossibilidade de negação - ou inegabilidade - dos pontos de partida. Nesse sentido, o fundamento de validade do ius puniendi do Estado, criado para proteger a propriedade e propiciar segurança pública, seria a própria norma hipotética fundamental.

Roxin e Jakobs, funcionalistas, pensam o fundamento de validade de forma distinta. Claus Roxin sustenta que a finalidade do Direito Penal seria a proteção de bens jurídicos mais caros aos cidadãos contra os ataques mais graves e intoleráveis. Günther Jakos pensa que o direito penal tem por função a proteção da norma. O criminoso viola a norma proibitiva, que, contudo, se mantém válida e vigente voltando-se contra o infrator. Nessa tese, toda e qualquer violação da norma penal deveria ter consequência jurídica sob pena de enfraquecer o sistema normativo, e com ele a segurança das pessoas.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

LEI MARIA DA PENHA EXIGE REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA DE LESÕES CORPORAIS

Mudança de paradigma do STJ torna necessária a representação da vítima de crime de violência doméstica para o processo contra o ofensor

Inicialmente, prevalecia no STJ o entendimento de que a ação penal seria pública incondicionada, por força do artigo 41 da Lei Mª da Penha: STJ: HC 96.992. Posteriormente, no entanto, acabou prevalecendo que a ação penal é pública condicionada à representação, possibilitando a reconciliação do casal. REsp 1.097.042


Julgado do STJ: HC 96.992.

HC 96992/DF: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL SIMPLES OU CULPOSA PRATICADA CONTRA MULHER NO ÂMBITO DOMÉSTICO. PROTEÇÃO DA FAMÍLIA. PROIBIÇÃO DE APLICAÇÃO DA LEI 9.099/1995. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. ORDEM DENEGADA. 1. A família é a base da sociedade e tem a especial proteção do Estado; a assistência à família será feita na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (Inteligência do artigo 226 da Constituição da República). 2. As famílias que se erigem em meio à violência não possuem condições de ser base de apoio e desenvolvimento para os seus membros, os filhos daí advindos dificilmente terão condições de conviver sadiamente em sociedade, daí a preocupação do Estado em proteger especialmente essa instituição, criando mecanismos, como a Lei Maria da Penha, para tal desiderato.
3. Somente o procedimento da Lei 9.099/1995 exige representação da vítima no crime de lesão corporal leve e culposa para a propositura da ação penal. 4. Não se aplica aos crimes praticados contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, a Lei 9.099/1995. (Artigo 41 da Lei 11.340/2006). 5. A lesão corporal praticada contra a mulher no âmbito doméstico é qualificada por força do artigo 129, § 9º do Código Penal e se disciplina segundo as diretrizes desse Estatuto Legal, sendo a ação penal pública incondicionada. 6. A nova redação do parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal, feita pelo artigo 44 da Lei 11.340/2006, impondo pena máxima de três anos a lesão corporal qualificada, praticada no âmbito familiar, proíbe a utilização do procedimento dos Juizados Especiais, afastando por mais um motivo, a exigência de representação da vítima. 7. Ordem denegada. (HC 96992/DF – Rel.: Min. Jane Silva (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG)- 6ª Turma – j. 12/08/2008 - DJe 23/03/2009)

O entendimento pacificado agora é no sentido de que a ação penal no crime de lesão corporal leve sob a égide da Lei Maria da Penha é pública condicionada a representação.

Julgado do STJ: REsp 1.097.042.

REsp 1097042/DF: RECURSO ESPECIAL REPETITIVO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. PROCESSO PENAL. LEI MARIA DA PENHA. CRIME DE LESÃO CORPORAL LEVE. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA. IRRESIGNAÇÃO IMPROVIDA. 1. A ação penal nos crimes de lesão corporal leve cometidos em detrimento da mulher, no âmbito doméstico e familiar, é pública condicionada à representação da vítima. 2. O disposto no art. 41 da Lei 11.340/2006, que veda a aplicação da Lei 9.099/95, restringe-se à exclusão do procedimento sumaríssimo e das medidas despenalizadoras. 3. Nos termos do art. 16 da Lei Maria da Penha, a retratação da ofendida somente poderá ser realizada perante o magistrado, o qual terá condições de aferir a real espontaneidade da manifestação apresentada. 4. Recurso especial improvido. (REsp 1097042/DF – Rel.: Min. Napoleão Nunes Maia Filho – Rel.: para o Acórdão: Min. Jorge Mussi - 3ª Seção – j. 24/02/2010 - DJe 21/05/2010)


Informativo nº 0424
Período: 22 a 26 de fevereiro de 2010.

Terceira Seção
REPETITIVO. LEI MARIA DA PENHA.
A Seção, ao julgar recurso sob o regime do art. 543-C do CPC c/c a Res. n. 8/2008-STJ, firmou, por maioria, o entendimento de que, para propositura da ação penal pelo Ministério Público, é necessária a representação da vítima de violência doméstica nos casos de lesões corporais leves (Lei n. 11.340/2006 – Lei Maria da Penha), pois se cuida de uma ação pública condicionada. Observou-se, que entender a ação como incondicionada resultaria subtrair da mulher ofendida o direito e o anseio de livremente se relacionar com quem quer que seja escolhido como parceiro, o que significaria negar-lhe o direito à liberdade de se relacionar, direito de que é titular, para tratá-la como se fosse submetida à vontade dos agentes do Estado. Argumentou-se, citando a doutrina, que não há como prosseguir uma ação penal depois de o juiz ter obtido a reconciliação do casal ou ter homologado a separação com a definição de alimentos, partilha de bens, guarda e visitas. Assim, a possibilidade de trancamento de inquérito policial em muito facilitaria a composição dos conflitos envolvendo as questões de Direito de Família, mais relevantes do que a imposição de pena criminal ao agressor. Para os votos vencidos, a Lei n. 11.340/2006 afastou expressamente, no art. 41, a incidência da Lei n. 9.099/1995 nos casos de crimes de violência doméstica e familiares praticados contra a mulher. Com respaldo no art. 100 do CP, entendiam ser de ação pública incondicionada o referido crime sujeito à Lei Maria da Penha. Entendiam, também, que a citada lei pretendeu punir com maior rigor a violência doméstica, criando uma qualificadora ao crime de lesão corporal (art. 129, § 9º, do CP). Nesse contexto, defendiam não se poder exigir representação como condição da ação penal e deixar ao encargo da vítima a deflagração da persecução penal. REsp 1.097.042-DF, Rel. originário Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. para acórdão Min. Jorge Mussi, julgado em 24/2/2010.

SUPREMO RECONHECE INCONSTITUCIONALIDADE DA RECEPTAÇÃO QUALIFICADA

HC 102094 MC/SC: RECEPTAÇÃO SIMPLES (DOLO DIRETO) E RECEPTAÇÃO QUALIFICADA (DOLO INDIRETO EVENTUAL). COMINAÇÃO DE PENA MAIS LEVE PARA O CRIME MAIS GRAVE (CP, ART. 180, “CAPUT”) E DE PENA MAIS SEVERA PARA O CRIME MENOS GRAVE (CP, ART. 180, § 1º). TRANSGRESSÃO, PELO LEGISLADOR, DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA PROPORCIONALIDADE E DA INDIVIDUALIZAÇÃO “IN ABSTRACTO” DA PENA. LIMITAÇÕES MATERIAIS QUE SE IMPÕEM À OBSERVÂNCIA DO ESTADO, QUANDO DA ELABORAÇÃO DAS LEIS. A POSIÇÃO DE ALBERTO SILVA FRANCO, DAMÁSIO E. JESUS E DE CELSO, ROBERTO, ROBERTO JÚNIOR E FÁBIO DELMANTO. A PROPORCIONALIDADE COMO POSTULADO BÁSICO DE CONTENÇÃO DOS EXCESSOS DO PODER PÚBLICO. O “DUE PROCESS OF LAW” EM SUA DIMENSÃO SUBSTANTIVA (CF, ART. 5º, INCISO LIV). DOUTRINA. PRECEDENTES. A QUESTÃO DAS ANTINOMIAS (APARENTES E REAIS). CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO. INTERPRETAÇÃO AB-ROGANTE. EXCEPCIONALIDADE. UTILIZAÇÃO, SEMPRE QUE POSSÍVEL, PELO PODER JUDICIÁRIO, DA INTERPRETAÇÃO CORRETIVA, AINDA QUE DESTA RESULTE PEQUENA MODIFICAÇÃO NO TEXTO DA LEI. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. (HC 102094 MC/SC Relator: Min. CELSO DE MELLO Julgamento: 01/07/2010 Publicação: DJe-141 DIVULG 30/07/2010 - PUBLIC 02/08/2010)


DECISÃO: A presente impetração insurge-se contra decisão, que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, encontra-se consubstanciada em acórdão assim ementado:
“‘HABEAS CORPUS’. PENAL. RECEPTAÇÃO QUALIFICADA. TESE DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. RECONHECIMENTO DO DOLO DIRETO PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. SUSPENSÃO DA EFICÁCIA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ORDEM DENEGADA.
1. As instâncias ordinárias reconheceram que os Pacientes sabiam que a coisa era produto de crime, portanto, se o dolo eventual, nos termos da jurisprudência reiterada do Superior Tribunal de Justiça, é suficiente para configurar o tipo de receptação qualificada, com mais razão deve-se aplicar a pena mais grave aos condenados pela prática do crime com dolo direto, como no caso dos autos.
2. Em que pese a imprecisão técnica do legislador ao redigir o § 1º do art. 180 do Código Penal, não há razão para suspender a eficácia da sentença condenatória, afastando a aplicação da pena mais gravosa prevista para a receptação qualificada pelo fato de o crime ser praticado no exercício de atividade comercial ou industrial, obviamente mais grave que a figura simples.
3. ‘Habeas corpus’ denegado.” (HC 155.720/SC, Rel. Min. LAURITA VAZ – grifei)
Dentre os vários fundamentos que dão suporte à presente impetração, há um que se refere à alegada inconstitucionalidade do preceito secundário sancionador inscrito no § 1º do art. 180 do Código Penal, na redação dada pela Lei nº 9.426/96.
Tenho por relevante esse fundamento, por mim acolhido em processo anterior (HC 92.525-MC/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO), que sustenta a inconstitucionalidade em referência com apoio em alegada ofensa ao princípio da proporcionalidade, pois não se mostra razoável punir mais severamente uma conduta que revela índice de menor gravidade.
Cumpre ter presente, no exame desse tema, tal como relembrei naquela decisão, a advertência feita por ALBERTO SILVA FRANCO (“Código Penal e a sua interpretação jurisprudencial”, vol. 2/2969, item n. 10.00, 7ª ed., 2001, RT):
“Ora, tendo-se por diretriz o princípio da proporcionalidade, não há como admitir, sob o enfoque constitucional que o legislador ordinário estabeleça um preceito sancionatório mais gravoso para a receptação qualificada quando o agente atua com dolo eventual e mantenha, para a receptação do ‘caput’ do art. 180, um comando sancionador sensivelmente mais brando quando, no caso, o autor pratica o fato criminoso com dolo direto. As duas dimensões de subjetividade ‘dolo direto’ e ‘dolo eventual’ podem acarretar reações penais iguais, ou até mesmo, reações penais menos rigorosas em relação ao ‘dolo eventual’. O que não se pode reconhecer é que a ação praticada com ‘dolo eventual’ seja três vezes mais grave - é o mínimo legal que detecta o entendimento do legislador sobre a gravidade do fato criminoso - do que quase a mesma atividade delituosa, executada com dolo direto. Aí, o legislador penal afrontou, com uma clareza solar, o princípio da proporcionalidade.” (grifei)
Essa mesma crítica é também revelada por eminentes doutrinadores (CELSO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO JÚNIOR e FÁBIO M. DE ALMEIDA DELMANTO, “Código Penal Comentado”, p. 555, 7ª ed., 2007, Renovar), que igualmente vislumbram a existência, no preceito sancionador inscrito no § 1º do art. 180 do Código Penal, de transgressão ao princípio constitucional da proporcionalidade, eis que não tem sentido infligir punição mais gravosa à receptação qualificada (CP, art. 180, § 1º), que supõe, em sua configuração típica, mero dolo indireto eventual, e impor sanção penal mais branda à receptação simples (CP, art. 180, “caput”), cuja tipificação requer dolo direto, como adverte, em preciso magistério, DAMÁSIO E. DE JESUS (“Direito Penal”, vol. 2/490-494, item n. 9, “e”, 23ª ed., 2000, Saraiva, v.g.):
“(...) O § 1º do art. 180 do CP, com redação da Lei n° 9.426/96, descrevendo crime próprio, pune o comerciante ou industrial que comete receptação, empregando a expressão ‘que deve saber ser produto de crime’. Como o ‘caput’ prevê o conhecimento pleno (‘coisa que sabe ser produto de crime’), que a doutrina e a jurisprudência conectam ao dolo direto, e o § 3° descreve a forma culposa, o § 1º só pode tratar de crime doloso com o chamado conhecimento parcial da origem ilícita da coisa (dúvida, insegurança, incerteza), que a doutrina liga ao dolo eventual (ou à culpa). Se o § 1° definisse modalidade culposa, a figura típica nele contida não teria sentido em face do § 3°, que enuncia o crime culposo. Dessa forma, de acordo com a lei nova, se o comerciante devia saber que a coisa era produto de crime (dúvida, incerteza, desconfiança, dolo eventual), a pena é de 3 a 8 anos de reclusão (§ 1°). E se sabia, i. e., se tinha pleno conhecimento? O fato não se encontra ‘especificamente’ descrito no ‘caput’ ou no § 1°.
Haverá, no mínimo, cinco orientações:
1ª) se o comerciante ou industrial, presentes as elementares do tipo, ‘sabia’ que o objeto material era produto de crime, responde por receptação dolosa própria (‘caput’ do art. 180), levando-se em conta que o § 1° só prevê o ‘devia saber’. Se ‘sabia’, o fato é atípico diante do § 1°, que exige o elemento subjetivo do tipo ‘deve saber’ (princípio da legalidade ou da reserva legal). Se não sabia, embora devendo saber, aplica-se o § 1°;
2ª) o fato é absolutamente atípico, uma vez que o crime próprio de receptação de comerciante ou industrial encontra-se descrito no § 1°, que não prevê o elemento subjetivo do tipo ‘sabe’. Assim, o fato não se enquadra no ‘caput’ nem no § 1°;
3ª) o fato adapta-se ao § 1°, que abrange o ‘sabe’ (dolo direto para a doutrina) e o ‘deve saber’ (dolo indireto eventual): se a lei pune o fato menos grave com o mínimo de 3 anos de reclusão (‘deve saber’), não seria crível que o de maior gravidade (‘sabe’) fosse atípico ou punido com pena menor (1 ano de reclusão). O ‘deve saber’ não pode ser entendido como indicativo somente de dolo eventual, de dúvida ou incerteza, significando que a origem criminosa do objeto material ingressou na esfera de consciência do receptador, abrangendo o conhecimento pleno (‘sabe’) e o parcial (dúvida, desconfiança);
4ª) o tipo do § 1° deve ser totalmente desconsiderado porque ofende o princípio constitucional da proporcionalidade: se aplicado, ‘sabendo’ o comerciante ou industrial que a coisa se origina de crime (delito mais grave), a pena é de 1 a 4 anos de reclusão (‘caput’ do art. 180); ‘devendo saber’ (infração de menor gravidade), de 3 a 8 anos (§ 1°). Assim, consciente da origem delituosa do objeto material, responde por receptação dolosa própria (‘caput’ do art. 180); se ‘devia saber’, aplica-se a forma culposa (§ 3°), conforme pacífica jurisprudência anterior à lei;
5ª) concorda com a posição anterior, desconsiderando, contudo, somente o preceito secundário do § 1° do art. 180, permanecendo a definição do crime próprio do comerciante (preceito primário). Se ‘sabia’, aplica-se o ‘caput’; se ‘devia saber’, amolda-se o fato ao § 1°, com a pena do ‘caput’, cortando-se o excesso. A diferenciação pessoal e subjetiva é considerada pelo juiz na fixação da pena concreta.
A primeira orientação não pode ser aceita. Se o comerciante ‘sabia’, a pena é de 1 a 4 anos de reclusão; se ‘devia saber’, de 3 a 8 anos. O fato menos grave é apenado mais severamente.
A segunda posição carece de fundamento. A afirmação de que a conduta, consciente o comerciante ou industrial da origem ilícita do objeto material, é absolutamente atípica despreza o processo de atipicidade relativa: é atípica em face do § 1° (delito próprio), porém a incriminação subsiste diante da redação prevista no ‘caput’ (crime comum). A ausência da elementar desloca a adequação típica para outra figura.
O terceiro posicionamento desrespeita o princípio da tipicidade, uma vez que não distingue o sabe do deve saber. O ‘deve saber’, para essa orientação, inclui o ‘sabe’, o que é de todo improcedente, uma vez que constitui tradição de nossa doutrina, como vimos, ligar o ‘deve saber’ ao dolo eventual ou à culpa, categorias psicológico-normativas de censurabilidade menor.
A quarta orientação somente peca porque desconsidera totalmente o § 1°.
Preferimos a quinta orientação, para nós a menos pior, tendo em vista que a lei nova veio para confundir, não para esclarecer: o preceito secundário do § 1° deve ser desconsiderado, uma vez que ofende os princípios constitucionais da proporcionalidade e da individualização legal da pena. Realmente, nos termos das novas redações, literalmente interpretadas, se o comerciante devia saber da proveniência ilícita do objeto material, a pena é de reclusão, de 3 a 8 anos (§ 1°); se sabia, só pode subsistir o ‘caput’, com reclusão de 1 a 4 anos. A imposição de pena maior ao fato de menor gravidade é inconstitucional, desrespeitando os princípios da harmonia e da proporcionalidade.
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A elaboração da norma penal incriminadora não pode subtrair-se à obediência aos preceitos constitucionais. Cumpria, pois, à Lei n° 9.426/96, ter como parâmetro o princípio da proporcionalidade entre o fato cometido e a gravidade da resposta penal, pois é nesse momento, o da individualização legislativa da pena (CF, art. 5°, XLVI), que a proporcionalidade apresenta fundamentalmente a sua eficácia (...).
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Se a pena, abstrata ou concreta, de quem ‘sabe’ é mais censurável do que a do sujeito que ‘devia saber’, sendo comum no sistema da legislação penal brasileira descrever as duas situações subjetivas no mesmo tipo, não podia a Lei n° 9.426/96, ferindo o princípio da proporcionalidade, inserir o ‘devia saber’, de menor censurabilidade, em figura autônoma (§ 1º), com pena de 3 a 8 anos de reclusão, subsistindo o ‘sabia’, de menor reprovabilidade, no ‘caput’, com pena de 1 a 4 anos. A proporcionalidade, que indica equilíbrio, foi ferida. (...).” (grifei)
Vê-se, das lições ora expostas, que o legislador brasileiro - ao cominar pena mais leve a um delito mais grave (CP, art. 180, “caput”) e ao punir, com maior severidade, um crime revestido de menor gravidade (CP, art. 180, § 1º) - atuou, de modo absolutamente incongruente, com evidente transgressão ao postulado da proporcionalidade.
Impende advertir, neste ponto, que o Poder Público, especialmente em sede de tipificação e cominação penais, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade.
Como se sabe, a exigência de razoabilidade traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo.
O exame da adequação de determinado ato estatal ao princípio da proporcionalidade, exatamente por viabilizar o controle de sua razoabilidade, com fundamento no art. 5º, LIV, da Carta Política, inclui-se, por isso mesmo, no âmbito da própria fiscalização de constitucionalidade das prescrições normativas emanadas do Poder Público.
Esse entendimento é prestigiado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, por mais de uma vez, já advertiu que o Legislativo não pode atuar de maneira imoderada, nem formular regras legais cujo conteúdo revele deliberação absolutamente divorciada dos padrões de razoabilidade.
Entendo, por isso mesmo, que a tese exposta nesta impetração revela-se juridicamente plausível, especialmente se se considerar a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, que já assentou, a propósito do tema, a orientação de que transgride o postulado do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), analisado em sua dimensão material (“substantive due process of law”), a regra legal que veicula, em seu conteúdo, prescrição normativa qualificada pela nota da irrazoabilidade.
Coloca-se em evidência, neste ponto, o tema concernente ao princípio da proporcionalidade, que se qualifica - enquanto coeficiente de aferição da razoabilidade dos atos estatais (CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, “Curso de Direito Administrativo”, p. 56/57, itens ns. 18/19, 4ª ed., 1993, Malheiros; LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, “Curso de Direito Administrativo”, p. 46, item n. 3.3, 2ª ed., 1995, Malheiros) - como postulado básico de contenção dos excessos do Poder Público.
Essa é a razão pela qual a doutrina, após destacar a ampla incidência desse postulado sobre os múltiplos aspectos em que se desenvolve a atuação do Estado - inclusive sobre a atividade estatal de produção normativa (especialmente aquela de índole penal) - adverte que o princípio da proporcionalidade, essencial à racionalidade do Estado Democrático de Direito e imprescindível à tutela mesma das liberdades fundamentais, proíbe o excesso e veda o arbítrio do Poder, extraindo a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula, em sua dimensão substantiva ou material, a garantia do “due process of law” (RAQUEL DENIZE STUMM, “Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro”, p. 159/170, 1995, Livraria do Advogado Editora; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Direitos Humanos Fundamentais”, p. 111/112, item n. 14, 1995, Saraiva; PAULO BONAVIDES, “Curso de Direito Constitucional”, p. 352/355, item n. 11, 4ª ed., 1993, Malheiros).
Como precedentemente enfatizado, o princípio da proporcionalidade, em especial quando analisado na perspectiva do ordenamento penal, visa a inibir e a neutralizar o abuso do Poder Público no exercício das funções que lhe são inerentes, notadamente no desempenho da atividade de caráter legislativo. Dentro dessa perspectiva, o postulado em questão, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, atua como verdadeiro parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais.
A validade das manifestações do Estado, analisadas estas em função de seu conteúdo intrínseco - especialmente naquelas hipóteses de imposições restritivas ou supressivas incidentes sobre determinados valores básicos (como a liberdade) - passa a depender, essencialmente, da observância de determinados requisitos que atuam como expressivas limitações materiais à ação normativa do Poder Legislativo.
A essência do “substantive due process of law” reside na necessidade de conter os excessos do Poder, quando o Estado edita legislação que se revele destituída do necessário coeficiente de razoabilidade, como parece ocorrer na espécie ora em exame.
Isso significa, portanto, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal.
Daí a advertência de CAIO TÁCITO (RDP 100/11-12), que, ao relembrar a lição pioneira de SANTI ROMANO, destaca que a figura do desvio de poder legislativo impõe o reconhecimento de que a atividade legislativa deve desenvolver-se em estrita relação de harmonia com padrões de razoabilidade.
A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, bem por isso, tem censurado a validade jurídica de atos estatais, que, desconsiderando as limitações que incidem sobre o poder normativo do Estado, veiculam prescrições que ofendem os padrões de razoabilidade e que se revelam destituídas de causa legítima, exteriorizando abusos inaceitáveis e institucionalizando agravos inúteis e nocivos aos direitos das pessoas (RTJ 160/140-141, Rel. Min. CELSO DE MELLO - ADI 1.063/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Em suma: a norma estatal, que veicule qualquer conteúdo de irrazoabilidade (como ocorreria no caso em exame), transgride o princípio do devido processo legal, examinado este na perspectiva de sua projeção material (“substantive due process of law”).
Essa cláusula tutelar dos direitos, garantias e liberdades, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador, como esta Corte tem reiteradamente proclamado (RTJ 176/578-579, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Nem se diga, de outro lado, que o Supremo Tribunal Federal, ao assim proceder, estaria excedendo os limites materiais de sua função jurisdicional.
Na verdade, esta Suprema Corte, adstringindo-se aos estritos limites de sua competência constitucional, já decidiu, em contexto no qual se discutia a ocorrência, ou não, de antinomia real (ou insolúvel), insuscetível, portanto, de superação pelos critérios ordinários (critério cronológico, critério hierárquico e critério da especialidade), que se revelava legítima a utilização, embora excepcional, da interpretação ab-rogante, quando absoluta (e insuperável) a relação de antagonismo entre dois preceitos normativos, hipótese em que, adotado esse método extraordinário, “ou o intérprete elimina uma das normas contraditórias (ab-rogação simples) ou elimina as duas normas contrárias (ab-rogação dupla)” (RTJ 166/493, Rel. p/ o acórdão Min. MOREIRA ALVES).
Ao julgar o HC 68.793/RJ, Rel. p/ o acórdão Min. MOREIRA ALVES, a colenda Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, apoiando-se no magistério de NORBERTO BOBBIO (“Teoria do Ordenamento Jurídico”, p. 100/103, 1989, Polis/Editora Unb), assinalou que a interpretação ab-rogante, porque excepcional, deve ser ordinariamente afastada, preferindo-se, a ela, quando conciliáveis os dispositivos antinômicos (antinomia aparente), a denominada “(...) interpretação corretiva, que conserva ambas as normas incompatíveis por meio de interpretação que se ajuste ao espírito da lei e que corrija a incompatibilidade, eliminando-a pela introdução de leve ou de parcial modificação no texto da lei” (RTJ 166/493 – grifei).
Em conseqüência desse entendimento, e buscando viabilizar “a eliminação da incompatibilidade”, o Supremo Tribunal Federal (cuidava-se, então, de regras normativas constantes da Lei dos Crimes Hediondos), mediante exegese restritiva das normas legais em exame, promoveu uma conciliação sistemática dos preceitos legais, “(...) deixando ao primeiro, a fixação da pena (...) e ao segundo, a especialização do tipo do crime (...)” (RTJ 166/493), na linha do que se preconiza nas lições que venho de referir, que propõem, para solução do conflito, a subsistência do preceito primário consubstanciado no § 1º do art. 180 do Código Penal, embora aplicando-se-lhe o preceito sancionador (preceito secundário) inscrito no “caput” do referido art. 180 do CP.
Os aspectos que venho de ressaltar permitem-me reconhecer, embora em juízo de sumária cognição, a ocorrência, na espécie, do requisito pertinente à plausibilidade jurídica da pretensão deduzida pelo impetrante.
Concorre, por igual, o pressuposto concernente ao “periculum in mora”.
Sendo assim, e em face das razões expostas, defiro o pedido de medida liminar, para suspender, cautelarmente, quanto à pena imposta pelo crime tipificado no art. 180, § 1º, do CP, a eficácia da condenação decretada contra os ora pacientes, resultante do julgamento da Apelação Criminal nº 2009.058898-9, pela Primeira Câmara Criminal do E. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (Processo-crime nº 058.09.003047-5, que tramitou perante a 3ª Vara da comarca de São Bento do Sul/SC).
Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão ao E. Superior Tribunal de Justiça (HC 155.720/SC), ao E. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (Apelação Criminal nº 2009.058898-9) e ao MM. Juiz de Direito da 3ª Vara da comarca de São Bento do Sul/SC (Processo-crime nº 058.09.003047-5).
Publique-se.
Brasília, 1º de julho de 2010.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

AOS AMIGOS CONCURSEIROS

"Não, não pares.
É graça Divina
Começar bem.
Graça maior,
Persistir na caminhada certa.
Manter o ritmo...

Mas a graça das graças
É não desistir.
Podendo ou não podendo,
Caindo, embora aos pedaços,
Chegar ao fim..."

Dom Helder Câmara.